Este site é resultado de um projeto final em design que fala da transformação das trajetórias individuais em "dados pessoais" na Era Digital • Nele são propostos 10 temas-interações que podem ser acessados pelo menu ou por meio dos gatilhos que aparecem ao longo da navegação. Não hesite em clicar, arrastar, descer e subir as páginas ou preencher os campos de texto com informações fictícias. Este é um espaço de exploração onde os padrões de usabilidade da internet são questionados assim como o modelo de negócios baseado-em-dados que está por trás deles •

Quando as memórias são armazenadas na nuvem e a exposição da intimidade nas redes sociais e aplicativos é imperativa, que postura queremos das empresas que coletam, armazenam, analisam e vendem informações pessoais?

1.

ephemera
ao big data

Ephemera é o nome que se dá a objetos impressos que seriam descartáveis mas, por alguma razão, se tornam colecionáveis.
Bilhetes de metrô, entradas de cinema, encarte de exposição, mapas, cartões de visita.  Qual será o destino desses objetos conforme suas funcionalidades originais forem gradativamente incorporadas pelo ambiente digital?
A história e a experiência que um dia estiveram atreladas a um ingresso de cinema deixam de ser uma simples memória guardada na gaveta e passam a ser informações sobre o nosso comportamento criptografadas em linhas de código.
A ephemera digital é um grão de areia na imensidão do Big Data.  

2.

transformação
digital

A transformação digital é um fenômeno complexo que fez sumir objetos do cotidiano e aparecer outros no lugar; resolveu problemas antigos e nos surpreende a cada dia com novos; encurtou distâncias, conectou pessoas, rompeu barreiras antes intransponíveis e, na contramão, aumentou a ansiedade, a insegurança e o sentimento geral de solidão.
Embora as mudanças pareçam evidentes nos nossos bolsos, casas e cidades, os impactos da transformação digital na construção de si ainda são recentes e difíceis de mensurar. Muitos autores vêm fazendo esforços para compreender como os novos hábitos sociais reverberam na educação, no direito, na medicina, na arte, na segurança e - por que não - na subjetividade de cada um.

3.

intimidade como espetáculo

A pesquisadora Paula Sibília, em seu livro "o Show do Eu", fala das mudanças culturais trazidas pela internet e atenta para o surgimento de uma “sociedade altamente midiatizada, fascinada pela incitação à visibilidade e pelo império das celebridades”, onde cada indivíduo se torna uma personalidade cuja construção de si é orientada para o olhar alheio e cuja intimidade é feita espectáculo nas vitrines das redes sociais.
Para entender o fenômeno da exibição da intimidade, Sibília analisa a linha cada vez mais tênue entre vida e obra, que se confundem em uma sociedade cujos indivíduos expõe constantemente versões de si mesmos por meio de imagens de cenas da vida privada, mais ou menos editada.
A autora revisita os gêneros autobiográficos para apontar neles uma característica marcante cada vez mais disseminada nos ambientes digitais: narrar a própria vida como recurso de validação da mesma.

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SIBILIA, Paula. “O Show do Eu: a intimidade como espetáculo”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008

4.

guardar ou compartilhar?

A superexposição é um imperativo do nosso tempo e, se olharmos para a espetacularização da intimidade a partir da ótica da "digitalização das ephemeras", observaremos uma mudança intrigante na relação entre os verbos GUARDAR e COMPARTILHAR: estes dois conceitos antes antagônicos passam por um processo de hibridização na medida em que  as pessoas começam a utilizar o compartilhamento como recurso para registro, construção e validação de suas próprias histórias.
E uma vez que passamos a compartilhar nossa intimidade como nunca antes, se anunciam três questões centrais: compartilhar o que, com quem e como?
É relativamente sabido que, no mundo digital, nossas informações individuais como perfil demográfico, saúde, comportamento, hábitos, transações e compromissos são transformadas em "dados pessoais" (user-generated data). A história e a experiência que um dia estiveram atreladas a um ingresso de cinema deixam de ser uma simples memória guardada na gaveta  e se tornam informações sobre o nosso comportamento criptografadas em linhas de código. E a totalidade das minhas linhas de código, das suas e as de tudo e todos, por sua vez, forma o chamado Big Data -  que assim foi apelidado por sua natureza de crescimento exponencial: velocidade, volume e variedade.
Mas, embora possa parecer, os dados pessoais gerados por nós não boiam numa massa amorfa e indistinta nos servidores do além. Para ter valor, eles são armazenados, minerados,  analisados, categorizados e vendidos como informação para sabe-se lá quem. O que nós sim, sabemos, é que existem várias naturezas distintas de dados pessoais e, conforme as tecnologias se desenvolvem para aprimorar as possibilidades de monitoramento, muitas outras vão surgir. 
Neste projeto, 5 naturezas de dados pessoais são questionadas por meio das interações: dados de navegação, dados de cadastro, dados de saúde, dados de imagem e dados bancários.

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Data Thinking 2019. Disponível em:
data thinking-cappra-2019

5.

dados de navegação

Este conteúdo foi originalmente publicado no artigo "Wired guide to personal data (and who is using it)

Embora pareça um assunto ~moderno~, os seres humanos têm usado tecnologia para processar dados desde antes de jesus cristo. Mais precisamente em 150 A.C os cientistas gregos inventaram o mecanismo Antikythera para rastrear padrões astrológicos até que, mais de um milênio depois, Herman Hollerith criou uma máquina de tabulação para processar os dados do censo americano de 1890.
Na década de 1960 o governo americano utilizava computadores bastante potentes para armazenar dados de praticamente todos os cidadãos americanos e as grandes companhias analisavam informações sensíveis de seus consumidores, como hábitos de compra. 
Pasmem: em 1964 o livro The Naked Society, de Vance Packard, já argumentava que as mudanças tecnológicas estavam causando uma erosão da privacidade sem precedentes e no ano seguinte surgiu o primeiro subcomitê especial sobre a "invasão de privacidade" com o objetivo de analisar uma proposta do então presidente Lindon Johnson de unificar uma série de dados federais em um único Banco de Dados Nacional. O projeto do Banco de Dados Nacional nunca se concretizou, mas a década seguinte foi marcada por uma série de leis reguladoras sobre privacidade, embora nunca sobre a própria coleta dos dados.
Chegou a década de 90 e, com ela, o uso massivo da internet. Os casos de vigilância e de coleta ilegal de dados se multiplicaram gerando alguns escândalos e nenhuma atitude, até que algum gênio inventou a propaganda direcionada. Até então as propagandas online eram basicamente anônimas, se você buscasse "comida de gato" todos os dias talvez começassem a te sugerir comida de gato, mas os sites não eram capazes de conectar a pessoa que busca com sua identidade real. 
O gênio tem nome e um escândalo na conta: em 1999 a gigante de anúncios digitais DoubleClick gerou polêmica ao tentar desanonimizar as propagandas se fundindo com a Abacus Direct, uma data broker igualmente gigante. Os bastiões da privacidade se movimentaram e, em 2006, além de brecarem o negócio da DoubleClick também conseguiram criar a Network Advertising Iniciative, grupo que desde então desenvolve padrões para a veiculação de propagandas online.
Como era de se esperar, em 2008 o Google comprou a DoubleClick e em 2016 reviu sua antiga política de privacidade para liberar rastreamentos online vinculados à identidade. Até então o Google era obrigado a manter os dados da DoubleClick separados da base de dados pessoais coletados em aplicativos como gmail; hoje Google e Facebook podem direcionar anúncios relacionados com o seu nome, exatamente o que os bastiões da privacidade tentaram evitar lá atrás. E isso não é tudo: como hoje nós andamos para todo canto carregando dispositivos de rastreamento em forma de smartphones, essas empresas - e muitas outras - estão nos seguindo para onde quer que a gente vá.
Para saber mais sobre o passado, presente e futuro dos dados pessoais:

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The WIRED Guide to personal data (and who is using it). Disponível em: https://www.wired.com/story/wired-guide-personal-data-collection/

6.

dados de
cadastro

7.

dados
de saúde

Muitas vezes oferecemos nossos dados de cadastro em sites e aplicativos sem saber o que mais eles podem dizer sobre nós além do que parecem dizer a primeira vista.
Alguns pesquisadores defendem que, no contexto que temos hoje, não é suficiente que os governos protejam os dados pessoais: as pessoas precisam ser senhoras dos seus próprios dados e remuneradas quando eles são utilizados. Certas companhias já até fazem testes para recompensar com criptomoedas usuários que gastem tempo navegando em suas plataformas. Mas será que é por aí mesmo?
Mudarmos o proprietário dos dados não vai fazer com que as empresas sejam mais respeitosas e menos invasivas. A colunista da Wired, Louise Matsakis, argumenta que se a coleta fosse restringida no lugar do uso, as empresas seriam forçadas a migrar da propaganda direcionada para outro modelo de negócios mais sustentável.

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A Anistia Internacional publicou recentemente um relatório onde acusa Google e Facebook de terem criado uma cultura de espionagem sobre seus usuários que ameaça os direitos humanos.
Já a Wired lançou um artigo no qual esclarece todas as formas de rastreamento utilizadas pelo Google em seus dispositivos, aplicativos e serviços, além de formas de evitá-lo.

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All the way Google tracks you - and how to stop it. Disponível aqui

Surveillance Giants: how the business model of Google and Facebook threatens human rights. Disponível aqui.

O projeto Chupadados criado por Natasha Felizi e Joana Varon nos conta a história dessa entidade oculta que se aproveita do frisson tecnológico para monetizar clicks, curtidas, buscas, compartilhamentos e diversas outras informações sensíveis e pessoais na Era dos Dados.
Para encarar a face obscura das nossas  "tecnologias de estimação"  e jogar luz sobre os mecanismos de vigilância que as sustentam,  o projeto reúne histórias latino americanas sobre como a coleta e processamento massivo de dados vêm sendo utilizados por nós mesmos, por governos e empresas para monitorar pessoas no âmbito de suas cidades, casas, bolsos e corpos.
Dentro da categoria "corpos" encontramos insumos interessantes para compreender os paradoxos do "quantiefied-self", movimento que acredita numa melhora da qualidade de vida a partir do monitoramento constante do corpo através de gadgets. Aplicativos de esporte, dieta, encontros, menstruação... 
No artigo "Menstruapps: como transformar sua menstruação em dinheiro - para os outros" as autoras analisam o caso emblemático dos aplicativos de menstruação, que coletam informações íntimas e sensíveis das mulheres sem maiores contrapartidas de sigilo e, muitas vezes, são sustentados por vendas de dados para propaganda direcionada.

O modelo de negócios baseado em dados se ancora na narrativa de que ninguém tem nada a esconder para promover um festival de vigilância com consequências bastante turvas para a sociedade e, por essas e outras, as autoras argumentam que precisamos falar sobre a face oculta das nossas tecnologias de estimação.

Conheça mais sobre o projeto em:

https://chupadados.codingrights.org/


8.

dados
de imagem

Quando falamos em reconhecimento facial pensamos em algo distante, aquelas coisas que só acontecem em filme de ficção científica - ou na China. Mas o uso dos traços como forma de identificação é uma prática cada vez mais disseminada que vem sendo pesadamente estudada e aplicada pelas gigantes de tecnologia. A mais nova versão do Google Home - Google Nest Hub Max - apresenta uma funcionalidade chamada Face Match, que trabalha com reconhecimento facial constante para identificar com qual dos membros da família está interagindo. Essa funcionalidade trabalha mais ou menos como o Android Face Unlock e o ID Apple combinados com um software parecido com o utilizado pelo Google Photos e Facebook para identificação de pessoas.
No lugar do login manual, o Google Home te identifica a partir de um “modelo facial” e, a partir de então, pode dar informações personalizadas de calendário, tarefas, mensagens e, porque não (embora eles não admitam) anúncios. O Google Nest Hub Max é o primeiro dispositivo a ter reconhecimento facial “always on”, mas está longe de ser o primeiro a investir na tecnologia. O Facebook trabalha arduamente há anos para identificar que “fulano postou uma foto sua” e Apple e Android seguem o mesmo caminho para o desbloqueio dos celulares.
Esse movimento em direção a vigilância panóptica já era de se esperar no caso das gigantes de tecnologia, mas ao que tudo indica o buraco é mais embaixo. O Brasil inaugurou oficialmente o uso de reconhecimento facial na segurança pública este ano (após um ano de experiência em cinco estados) e as notícias não são nada boas: segundo monitoramento da Rede de Observatórios da segurança 90,5% das pessoas presas em decorrência do uso de reconhecimento facial eram negras.
   
“ O reconhecimento facial tem se mostrado uma atualização high-tech para o velho e conhecido racismo que está na base do sistema de justiça criminal e guia o trabalho policial há décadas.”

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O reconhecimento facial funciona como uma espécie de biometria onde se mapeia a distância entre pontos definidos e, a partir disso, calcula-se a probabilidade da face corresponder àquela do banco de dados. Ao identificar uma porcentagem mínima de semelhança entre a pessoa filmada e a registrada, o sistema dispara um alerta e a polícia vai averiguar.  Trata-se de uma tarefa difícil tanto na China como no Brasil e em Hong Kong os manifestantes ficaram famosos por sairem às ruas camuflados para se proteger da identificação.

A proposta de interação dos dados de imagem busca questionar a legitimidade do uso de reconhecimento facial para identificação de pessoas, principalmente pelo Estado. O conceito utilizado - não sem ironia - é: “Proteja o Wally do reconhecimento facial”. Afinal, o que será dele em um mundo constantemente vigiado por câmeras?

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1. Google collects face data now. Disponível aqui.

2. LEVANTAMENTO REVELA QUE 90,5% DOS PRESOS POR MONITORAMENTO FACIAL NO BRASIL SÃO NEGROS. Disponível aqui

9.

dados bancários

O trade-off entre os dados que você fornece e o serviço que recebe em troca pode ou não valer a pena, dependendo do caso e dos seus parâmetros de privacidade. Mas entre nós e os serviços que nos são prestados existe uma categoria que coleta, analisa e vende informações  sem qualquer espécie de contrapartida: data brokers. Os data brokers são empresas que conseguem coletar todas as informações públicas de qualquer pessoa, desde informações de propriedades até histórico judicial, podendo angariar também registros médicos, histórico de navegação, conexões nas redes sociais e compras online.
As informações coletadas pelos data brokers podem ser imprecisas, mas mesmo assim são de grande valor para empresas, anunciantes e investidores. Estima-se que as empresas americanas gastaram 19 bilhões de dólares coletando e analisando dados dos usuários somente em 2018, ou seja, é um negócio bastante  lucrativo.
Embora estejam surgindo novas leis que buscam regular esse festival de dados, atualmente esse processo segue majoritariamente sem regulamentação e, embora a gente possa apagar nossa conta no facebook ou google em segundos, ninguém garante a mesma eficiência na eliminação do registro dos nossos dados pessoais.
Enquanto isso, a competição corre solta entre as data-based-companies para ver quem descobre primeiro a futura gravidez de uma menina que nem ficou menstruada ainda.  
O que você acha de comprar sua privacidade?

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A equipe do Instituto Cappra realizou uma experiência descrita no relatório Data Thinking 2019: limparam o histórico do computador e navegaram por 2 minutos ao final dos quais já haviam 74 empresas coletando os dados de navegação. TIME'S OUT, baby.

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The WIRED Guide to Your Personal Data (and Who Is Using It). Disponível aqui.

Data Thinking 2019. Disponível em: data thinking-cappra-2019


10.

termos e condições

Por fim, um manifesto: 
Na transição do guardar para o compartilhar, o design, em especial aquele que pensa, estrutura e desenha produtos digitais, ganhou uma nova responsabilidade: mediar a relação entre o usuário e esse novo ambiente onde ele compartilha suas informações pessoais. 
É preciso entender a experiência do usuário para além dos mapas de calor e da quantidade de cliques necessários para alcançar determinada informação. Se o preço para um fluxo de navegação “sem ruídos” é  fazer as pessoas concordarem, por exemplo, com termos e condições que caso bem observados seriam rechaçados, não vale a pena. Já passou da hora da nossa noção de experiência transcender as telas para abarcar também os impactos que os cliques terão no mundo e nos sentimentos quando os computadores forem desligados.

Eu me tornei o que eu mais temia. Uma reedição online do Victor Papanek.

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PAPANEK, Victor. “Design for the real world”. Londres: Thames and Hudson Ltd, 2019